Marcos, eu queria saber o que eu faço pra aguentar a tortura? Essa pergunta me fez teorizar o que eu tinha vivido até aquele momento. E eu falei pra ele: primeira coisa, se você não tiver um amor no coração e não na cabeça; um amor pelos teus companheiros operários, pela classe trabalhadora, pelas pessoas; não pela classe abstrata, mas pelas pessoas humanas, que você conhece, admira, respeita e ama. Se você não tiver esse amor, vai ser difícil aguentar. Porque o compromisso racional é muito fraco. Vêm à tona um monte de tentações racionalizantes na hora: “se você sobreviver, você vai continuar na luta, então faça tudo pra sobreviver, não importa o quê”. Isso quer dizer: entregar outros. E aí é que deve vir um contraponto que vem daqui debaixo, do coração, que diz assim: você não pode entregar ninguém. E se você morrer, outros vão continuar. É mentira do torturador que "a tua guerra acabou". Não há "a tua guerra". A guerra não é minha! É do povo brasileiro! É do povo do mundo contra a opressão e pela liberdade!
A receita para resistir aos abusos desumanos da tortura durante a ditadura militar não se restringe a esse período histórico na trajetória de Marcos Arruda. O passo lento e a escuta atenta denunciam a permanência desse profundo amor pela humanidade e para além dela, por tudo o que a vida humana abarca, o universo, o uno. A totalidade da visão histórica marxista é ainda mais esgarçada na visão do geólogo-economista-educador popular Marcos Arruda.
Nascido e criado em meio a privilégios, se comparado ao povo pobre, foi na faculdade de Geologia que o jovem carioca viu descortinar-se na sua frente, como num filme de Carlitos, a luta de classes. E foi nessa época que ele fez a opção por tomar partido. Descobriu o mecanismo que mantém o funcionamento da exploração do homem pelo homem e se forjou mais forte do que a estrutura corporal franzina podia abarcar.
À beira da esteira de uma fábrica em São Paulo, aprendeu na prática a dialética de Paulo Freira de ensino-aprendizagem nas classes populares. Aprender e ensinar com os companheiros, alguns analfabetos, fez nascer o educador popular, título predileto de Marcos nas apresentações. O que aqueles homens, pobres, oprimidos por jornadas estafantes, tinham a ensinar ao jovem idealista recém-saído da universidade? Tinham tudo.
Com a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), agigantou-se a convicção de que tomar partido em defesa da liberdade, n’alguns momentos históricos, exige mais que coragem, exige amor incondicional pelas pessoas e fé inabalável na emancipação humana. Ela, não tão breve, há de vir.
Marcos foi perseguido, preso, torturado e exilado pela ditadura civil-militar, repetindo a história de milhares de companheiros e companheiras, incontáveis para os relatórios da Comissão da Verdade. Morou na Suíça e nos Estados Unidos. Nos tempos de dor e tristeza, a convicção o fez resistir e renascer.
Participou junto de Betinho e Carlos Afonso, da fundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), em 1981. Cinco anos depois, em 1986, fundaria o Pacs. O Instituto nasce como o braço brasileiro da articulação Pries – Programa Regional de Investigações Econômicas e Sociais para o Cone Sul da América Latina, iniciativa de um grupo de economistas que retornavam do exílio a seus países de origem: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. A aliança com o Pries se manteve até 1995, após nove anos de colaboração e produção coletiva.
A integração em redes de solidariedade com a América Latina e o Caribe hoje se estende a proporções mundiais nos laços construídos no próprio Pacs e na Universidade Internacional da Paz, no Programa Educação Gaia, na rede Diálogos em Humanidade, e no Instituto Transnacional.
Ao longo destes 30 anos do Instituto Pacs, Marcos escreveu dezenas de livros, cartilhas e artigos de diversos temas, dentre eles: economia solidária, economia do amor, educação popular, dívida pública, autogestão, ditadura empresarial-militar [Acesse o acervo de Marcos Arruda].
Além disso, colaborou na formação de trabalhadores/as, sindicalistas, grupos de produção solidária, partidos, educadores/as. Assessorou associações, movimentos sociais e governos populares. Trinta anos depois de fazer brotar a ideia do Instituto, Marcos segue na ativa, em diversas atividades de educação, assessoria, crítica. Caminha a passos a um só tempo brandos e firmes, na direção da sua e da nossa utopia maior: um mundo sem opressões, exploração e injustiça. Um mundo onde todos e todas sejamos um na diversidade!
Leia abaixo entrevista que realizamos com Marcos na ocasião dos 30 anos do Pacs:
Entrevista com Marcos Arruda
Marcos, se você pudesse dar um nome a sua profissão que não seja um nome que esteja aí, que nome você daria?
Vou ter que ser muito criativo porque ninguém faz isso. Eu poderia dizer que sou um noólogo. Que tal essa? [Risos].
O que é um noólogo?
Há um grande autor que admiro muito, se chama Teilhard de Chardin. Ele é geólogo e místico que era Jesuíta, mas foi alguém que conseguiu descobrir uma maneira de integrar ciência e espiritualidade. Ele percebeu que o problema da Igreja é o conceito do Divino completamente separado da vida, da matéria, da nossa existência. Inventaram um ser que está lá fora vigiando as pessoas para controlar, julgar e condenar. Toda uma concepção falsa e irreal, marcada pelo medo e pela culpa, que levou muita gente ao ateísmo. E ele diz algo assim: “Pela ciência, o que posso chamar de Divino é o princípio de vida que empurra a evolução sempre mais além, e que está em nós, em cada um, na natureza, no universo inteiro. Uma espécie de alma da matéria, alma viva – o princípio vital, que cria e sustenta a vida, que mantém a evolução e permite que ela avance a partir dos seus potenciais. E que, ainda por cima, tende a uma crescente convergência, à união”. Ele passa a cultuar a Matéria como uma coisa sagrada: ela é portadora do Divino, se a gente entende o Divino como a Vida, ou o Princípio que sustenta e faz evoluir a vida. Então, isso mudou minha cabeça lá nos anos 60, quando eu ainda estudava Geologia; de lá pra cá, eu vim aprofundado essa concepção. Teilhard tem um conceito que vai além da biosfera.
Existe a geosfera, a biosfera e a noosfera. A noosfera é a esfera do ser humano, um ser noético, um ser que é capaz de projetar antes de fazer as coisas acontecerem. Sonhar e depois atuar sobre si próprio e sobre o mundo para tornar real o que começa como sonho. Essa é a nossa capacidade noética. O “nous”, que é derivado do grego [quer dizer “mente, consciência superior”], os outros animais ainda não chegaram a ele. Os saltos evolutivos foram viabilizando pouco a pouco a consciência, até chegar ao ser reflexivo, consciente de si, capaz de se distinguir dos outros e do mundo e de ver o todo, para além das partes, capaz de exercer uma coisa fabulosa que o “nous” nos presenteou, que é a liberdade de escolha. O poder de escolher conscientemente e de fazer um mundo, porque, podendo escolher, você vira sujeito e não é mais mero objeto. Então, essa concepção me leva a sintetizar tudo o que eu faço na profissão de noólogo.
A religião esteve presente no começo da sua caminhada e até hoje algumas agências parceiras do Pacs são partes de instituições religiosas. Como foi a influência religiosa da sua família?
Eu vinha de uma família conservadora que tinha membros das forças armadas e, desde cedo eu ouvia o discurso anti-Getúlio, anti-sindicalismo, anti-Jango, anti-tudo o que tinha a ver com o povo. Na frente da minha casa, estava o Morro de Santa Marta, dá para ve-lo daqui de casa. Cresci ali defronte, na Rua Sorocaba. As empregadas lá de casa vinham dali. A favela ainda era pequena. Eu nunca questionei porque elas moravam ali e porque eram pobres e tinham que trabalhar para nós.
Quando fui pra faculdade, fui com a convicção de que o comunismo era terrível, cortava a liberdade, acabava com os direitos das pessoas. Era preciso impedir que ele vire governo, a todo custo, elegendo candidatos da direita: Eduardo Gomes, Jânio... Na minha primeira eleição, votei no Jânio. Foi a primeira e a última! Desde então, nunca mais votei na direita. Eu estava na faculdade e entrei para a JUC, Juventude Universitária Católica. A JUC foi uma grande influência para eu entender criticamente o mundo. Colegas da minha turma vinham do Colégio Pedro II, com uma cabeça muito aberta e foram, pouco a pouco, pacientemente, conversando comigo sobre o outro lado do mundo, a visão histórica do mundo, que a pobreza nasceu por uma ordem social determinada, feita pelo capital e por aí foi...
Quando aconteceu a renúncia do Jânio, em 61, eu já estava em ebulição. Quando houve a tentativa de golpe em 62 – a recusa de aceitarem que o Jango voltasse da visita oficial à China –, eu me alinhei à campanha pela legalidade e democracia, que dizia: “Deixem o Jango tomar posse, porque ele foi eleito. Tudo o mais seria golpe!” Na época no Brasil, havia eleição para vice-presidente. Não era como agora que os dois [presidente e vice-presidente] vão numa chapa só. Jango havia sido eleito pelo PTB, adversário da UDN e não era do caminho ideológico do Jânio Quadros. “Ah, mas o Brasil vai virar comunista!” diziam em casa e na Escola. E eu comecei a debater, a defender a legalidade e a democracia. Houve um crescente distanciamento, um abismo, entre mim e minha família. Meus tios, minha mãe, que morava nos Estados Unidos, que amava o Kennedy, o Partido Democrata de lá... Eles passaram a se contrapor a mim, cada vez com mais virulência. E eu tentando explicar: “Eu abri os olhos, mãe. Eu agora vejo a realidade. Ela é diferente do que aprendemos”.
Eu não tinha ainda uma capacidade de diálogo muito desenvolvida, então era um conflito de verdades. Aí mudou a minha vida. Eu terminei a Geologia já como presidente da Executiva Nacional dos Estudantes de Geologia no ano de 1964, o ano do golpe. Tive que me afastar da Escola pelo risco de o diretor mandar me prender. Depois, voltei e terminei o curso. Ainda fiz uma porção de coisas na Escola contra a ditadura e trabalhei também como militante da AP [Ação Popular], assim que saí da Escola. Não tivemos o direito à formatura porque a minha turma era toda questionadora. Nós queríamos Paulo Freire como paraninfo. “Não pode”. Celso Furtado? “Também não pode.” Então de tanto “não pode”, eles disseram: “Chega, vocês não vão ter formatura, podem ir pegar os seus diplomas na secretaria”. Essa era a minha turma. Essa era a minha Escola. Então eu me formei e já tinha um compromisso social. Agora eu podia me dedicar ativamente à Ação Popular. Fui incluído numa comissão dedicada a organizar os intelectuais do Rio contra a ditadura.
Você viveu um bom tempo na clandestinidade enquanto militava na Ação Popular, né?
Aí já foi outra etapa. Depois que o golpe se consolidou, e os militares não foram embora como tinham prometido, eu tive que achar trabalho fora do Rio, porque aqui não tinha trabalho pra mim. Eu me candidatava, trazia o currículo e era rejeitado. Foi o caso do DNPM - Departamento de Produção Mineral, lá na Praia Vermelha. Eu tinha estudado lá. Os dirigentes de lá diziam: “Esse cara não”. Porque a minha Escola já tinha colocado meu nome numa lista para eu não ter trabalho como geólogo. Então consegui trabalho em Petrópolis, fui morar lá. Além do meu trabalho profissional, eu fazia esse trabalho político de vir ao Rio e contatar intelectuais. Convivi com pessoas fantásticas... o músico e compositor Sérgio Ricardo; o literato e autor Otto Maria Carpeaux – um refugiado austríaco da perseguição nazista que virou um grande perito da língua portuguesa; o escritor Fernando Sabino, e tal. Mas um dia a polícia veio à minha casa e eu tive que fugir. Fui pra São Paulo. Eu estava casado, e nós fomos embora para lá. Frei Betto, amigo já havia uns anos, me ajudou a fazer outra vida em São Paulo. Fiz uma especialização em Geociências na USP, dei aula de Geociências no Colégio Santa Cruz, dei aulas particulares, depois trabalhei na revista Realidade, da editora Abril, que na época era bem melhor do que hoje. Hoje ela é o que a Veja é.
Era a revista Realidade, né? Como era o seu trabalho lá?
Era um trabalho pequeno, como responsável da seção de cartas. Tradução também. Não trabalhei como jornalista. Foi nessa altura que eu decidi ir pra fabrica. Saí de tudo e resolvi ser operário. Convivi com companheiros da Ação Popular que eram operários e fui aprendendo a falar como operário. É uma outra estória – o discurso, o modo de me expressar –, tudo tão diferente, difícil pra caramba. Fui pesquisando, aprendendo a conhecer melhor o ambiente, até que chegou a hora de buscar trabalho. Passei dois anos como metalúrgico. Dois anos de fábrica estão relatados num capítulo do livro “Educação para uma Economia do Amor”, da Editora Ideias&Letras. Eu era trabalhador e intelectual ao mesmo tempo. Como compatibilizar as duas coisas? Como ser aberto para aprender de quem nunca estudou? Eu já conhecia o Paulo Freire, não pessoalmente, mas pela metodologia dele. Já tinha usado o método dele na alfabetização de operários, antes de ser operário. Mas me sentia aprendendo outra vez o que é educação libertadora.
E como essa experiência operária colaborou para a trajetória do noólogo?
A experiência na fábrica foi muito dura. Eu tinha um horário absurdo. Era uma empresa transnacional alemã, três mil operários, trabalho muito duro e ruim. A jornada era de doze horas por dia, seis vezes por semana, e frequentes horas-extra. A gente vivia exausto. O dinheiro que ganhava só dava pra três semanas de comer e se transportar para o trabalho. No fim de três semanas, a gente passava a comprar fiado a comida e a acordar uma hora mais cedo pra ir pra fábrica a pé. Isso em São Paulo, a maior cidade da América Latina.
Fisicamente, era muito desgastante. Sem falar no trabalho político que era ajudar a organizar a base sindical, pesquisar e compartilhar os direitos dos operários e encontrar formas, numa época de ditadura, de não ser reconhecido como alguém de fora, que tinha faculdade... Tinha também a convivência com os companheiros, debates, discussões, trabalho educativo fora do espaço da fábrica.
Essa convivência acontecia que horas? Aos domingos, na beira da esteira?
Sim, e na hora do almoço, quando a gente tinha uma hora pra comer juntos. E, às vezes, reuniões no bairro, nos domingos. Mas era muito esforço e muito sofrimento pra pouco resultado. Tanto que chegou uma época que eu já estava querendo ir embora daquilo tudo. E eu ainda tinha uma escolha como professor. Eu podia dar aulas particulares de matemática moderna. Quando o dinheiro apertava, eu fazia isto. Depois, tive uma complicação no pulmão devido ao ar muito poluído da minha seção na fábrica, tive que diminuir as horas de trabalho e logo a empresa me mandou embora.
Como foi pra você ter esse tipo de relação com o trabalho?
Foi uma revolução maior ainda. Eu já vinha na visão de que a opressão está no sistema, de que não é um problema de relações interpessoais, então quando eu vivi isso tudo, a minha compreensão do capitalismo como um sistema global se ampliou, sistema que envolvia as dimensões objetiva e subjetiva de nós operários. “Cadê os donos da fábrica, que usufruem do dinheiro que nós fazemos para eles? Moram na Alemanha! Eu e meus colegas nunca o vimos. E eles lá, ganhando o dinheiro que nós produzíamos pra eles, e nós, sofrendo aquela condição de vida? Tem algum sentido? Tudo isso foi aprofundando a minha atitude anti-sistema, que eu compartilhava com meus colegas da fábrica e do Sindicato de Metalúrgicos de São Paulo.
Fui percebendo: “Caramba, esses companheiros operários são heróis, lutam cada dia para manter a família e ainda vão ao sindicato, sofrem riscos, alguns são presos, alguns são torturados, e quando são libertados voltam pra fábrica, voltam pra casa no bairro, pois não têm outra escolha”. Quando eu fui preso como operário, eu tive escolha. Estou aqui até hoje, não tive que voltar pra fábrica.
Você foi demitido por causa do problema pulmonar e, quando estava procurando um novo trabalho como operário, você foi preso.
É isso.
Nesses nove meses que você ficou nas mãos do Estado ditatorial, você pensou em desistir? O que rondou seus pensamentos enquanto você esteve lá?
É uma história meio longa, mas vou tentar resumir. Primeiro o sentimento: pleno terror. Vivi a realidade do terrorismo de Estado. Durante nove meses, fui levado à tortura apenas duas vezes. Mas a ameaça era diária e permanente. O pensamento era: “Como é que vou resistir sem entregar ninguém?” No dia seguinte ao da minha prisão pela Operação Bandeirantes, em São Paulo, estando eu muito estourado pela tortura, fui colocado num banheiro onde já havia uns quatro outros presos. Lá encontrei um médico trotskista que me conhecia, porque ele panfletava na porta da minha fabrica, e a gente conversava. Ele, militante trotskista, e eu, da AP. Então ele senta na tampa da privada e me fala: “Marcos, eu queria saber: o que eu faço pra aguentar a tortura?”.
Essa pergunta me fez teorizar o que eu tinha vivido até aquele momento. E eu disse, improvisando: “Primeira coisa, se você não tiver um amor aqui [aponta para o coração] e não aqui [aponta para a cabeça]... Um amor pelos teus companheiros operários, pela classe trabalhadora. Não é a classe abstrata, mas pessoas, que você conhece, que você admira, respeita e ama. Se você não tiver esse amor, vai ser difícil aguentar. Porque o compromisso racional é muito fraco. Vem um monte de tentações racionalizantes na hora, sussurrando: ‘Se você sobreviver, vai poder continuar na luta, então faça tudo pra sobreviver, não importa o quê’. Isso quer dizer entregar outros. E aí é que deve vir uma contra ação que vem daqui de dentro do coração, que diz assim: ‘Você não pode entregar ninguém. E, se você morrer, outros vão continuar'. É mentira do torturador que a minha guerra acabou. Não há a minha guerra! A guerra não é minha! É do povo brasileiro; é do povo do mundo contra toda opressão. Eu não posso achar que a minha morte acaba tudo. Esse trabalho interior é dificílimo se você não tiver esse combustível amoroso te alimentando”. Essa foi a primeira coisa que eu falei pra ele.
A segunda foi: “Saiba que a tortura é uma vertente de sofrimento e de terror que sobe, sobe, sobe e que parece que vai chegar na morte. Só que, antes de morrer, tem um ponto de inflexão espantoso que eu nunca tinha ouvido falar. Que é quando toda essa dor que não acaba nunca, chega ao limite, e aí você passa por um momento em que não sente mais nada. Você não sente os choques, não sente a palmatória, não sente o barulho infernal que eles fazem para aumentar o terror. Você está totalmente estupidificado. Perto da morte. É um estado de pré-morte, acho eu. O corpo coberto de suor frio. A voz nula. Não tem mais som. Você quer gritar, porque o corpo reclama. Você está no limite. Pois esse é um momento perigosíssimo!”, eu disse pra ele. “Por que é um momento da coragem: ‘Já que eu não sinto nada, eu posso dizer um monte de verdades pra esses caras’. Mas esse é o momento de calar. De não dizer nada. Não dar uma de herói. Porque aí eles vão te matar. Então, fica quieto. Essa é a segunda lição. A terceira lição é: nunca mude sua estória. Porque se você mudar isso [faz com o dedão e o indicador uma distância pequenina], eles pegam isso, isso e isso [foi aumentando a distância com os braços] e não acaba mais. Então fica na sua estória inicial, o resto da vida e até na morte, senão vai ser pior ainda, pois outros acabam caindo por sua causa”.
Tudo isso pra te dizer, Janaína, que esse primeiro período foi brutal. Depois teve o período do Hospital Militar, da volta da Operação Bandeirantes para acareação com a Marlene. Foi outro momento impressionante também. A Marlene foi a moça que levou a polícia pra me prender. Eu não tinha nenhum rancor dela porque eu sabia como era a tortura.
Você ia encontrar a Marlene pra levá-la a uma casa segura, quando foi capturado. Depois os militares colocaram vocês frente a frente?
Eu estava achando que ela podia até estar fazendo o jogo da repressão. Foi um momento muito difícil, e eu acho que foi o pico do meu sofrimento na prisão. Aconteceu o seguinte: eles me botaram diante dela, depois de eu manter a minha estória e eles dizerem: “Ela já disse tudo, tanto que ela já foi embora para a prisão Tiradentes, lá não tem isso aqui. Agora, só falta você dizer a verdade. Que seja compatível com o que ela disse”. Eu disse: “Não tenho mais nada a dizer”. Aí eles me tiraram da sala, me deram bofetadas, o golpe do telefone com as mãos em concha, queimaram meu ombro com cigarro, mas não podiam me dar choque porque eu estava ainda em tratamento neurológico, com a cara deformada, e com pequenos tremores vindos das convulsões. Mas eles não conseguiram nada. Foi um momento importantíssimo.
Aí eles então saíram da sala e ouvi através da parede de eucatex, na outra sala, eles dizerem aquilo que me deu força pra muita coisa depois. “O quê que vamos fazer pra esse filha da puta falar?”. Nesse momento, eu percebi onde estava a força. Eram eles os impotentes! Eles não conseguiam o que queriam de mim, apesar de tanta violência! Era eu quem tinha a força. Eu calando, eram eles os impotentes. A guerra eram eles que estavam perdendo. Mesmo que eles nos matem, são eles que estão perdendo. Eles vão ganhar se eu falar. Isso me esclareceu outra vez como eu devia me comportar. Me levaram de volta pra sala com a Marlene e aí é que foi o trauma maior. Começaram a torturar ela pra eu falar [longa pausa e choro].
Aí aconteceu um milagre, Janaína. De repente, um barulho lá embaixo, gritos na escada, tropeços. Aí eu ouvi eles dizerem: “Já pra cela!” Levaram Marlene para fora da sala de acariação, depois me levaram para o meu quarto-cela e acabou tudo de uma hora pra outra. Havia chegado um outro grupo de presos para serem torturados na hora. Foi aí que eu tive a percepção da grandeza da Marlene... Mas isso eu não vou contar, porque não vai dar tempo. Há um filminho feito por uma companheira americana, a Marga Kempner, depois se você quiser eu te passo [“O Companheiro” é a versão de 10 minutos, e “Horas”, de 33 minutos].
A Marlene era da Rede, né? Foi um encontro que ela marcou com você no largo da Lapa para que você a ajudasse a mudar de casa e sair da organização de luta armada (Rede), que estava sendo toda presa pelo Estado.
Eu não sabia o que era a Rede, eu não sabia dessas diferenças... Era tudo clandestino, né? Fiquei sabendo da Rede quando a AP me disse: “Olha, você está incumbido de encontrar uma casa pra Marlene morar e ajudar ela a entrar na produção”. Então eu fui pra esse encontro com ela pra dizer que eu não tinha ainda encontrado uma casa. Eu não podia botar em risco outros três companheiros no bairro onde eu estava, que era um bairro operário. Tarde demais! Ela já tinha sido presa. E levou a Operação Bandeirantes onde íamos nos encontrar, e eles me pegaram.
Entendi. A cooperação internacional acabou por ajudar na sua saída da prisão, né? A sua mãe mobilizou a Anistia Internacional em torno do seu caso e tudo. Como foi isso?
A minha mãe era interprete, estava morando nos Estados Unidos, quando a minha avó entrou em contato com ela dizendo que eu tinha sido preso e estava desaparecido. Ficaram um mês sem saberem de mim. Ela imediatamente veio pro Rio e foi me visitar no Hospital Militar de São Paulo. Isso devia ser começo de junho. Por um milagre, ela conseguiu licença pra me ver. E eu ainda estava mal pra caramba. Ainda estava com tratamento psicológico, fisiológico. Eu não saía da cama, a minha perna ficou atrofiada. Parecia perna de judeu em campo de concentração. A outra ficou normal, não perdeu o tônus. Mas essa [a esquerda] que levou choques durante cinco horas ou sei lá quantas, ficou assim: primeiro dura como um tronco, depois mole como uma folha de papel. Eu tive que andar de cabo de vassoura, que me deram pra eu poder ir ao banheiro...
Então ela veio me visitar. Outro milagre: o capitão responsável pela segurança teve a gentileza de deixa-la comigo a sós! Mandou que tirassem o outro preso que estava na cela comigo, e eu pude contar a ela tudo o que tinha acontecido. Claro que foi um alívio ver minha mãe dentro daquele espaço de morte em que eu estava. A gente quando é torturado é a palavra que vem: “Mamãe!!!”. É impressionante. Ela me confortou muito e quis saber de tudo. Eu contei todos os detalhes. Aí ela voltou pros Estados Unidos e começou a escrever cartas pra Anistia Internacional, pra Cruz Vermelha, pro Congresso, pra mídia, entregou as cartas pra jornalistas sindicalizados, e foi abrindo novos contatos. Foi ao Conselho Nacional de Igrejas, foi ao Conselho dos Bispos Católicos dos Estados Unidos e criou uma rede. Foi o primeiro caso de tortura sob a ditadura no Brasil que realmente apareceu nos Estados Unidos, foi por meio ela. [Para uma narração detalhada de todos esses fatos, e do que minha família viveu enquanto estive preso e depois refugiado no exterior, ver Lina Penna Sattamini, 2000, “Esquecer? Nunca Mais!”]. Isso começou a criar um movimento. A uma certa altura, a Anistia Internacional dedicou um capítulo dela, um grupo na Pensilvânia, só pro meu caso. Esse grupo passou a escrever cartas para o governo brasileiro questionando a minha prisão. Sou infinitamente grato à minha mãe, que foi capital pra eu estar aqui vivo conversando com você. Ela e minha família, especialmente minha avó Maria. Imagine que Mamãe e outras duas senhoras perderam a cidadania brasileira por resistirem à obrigação de fazer o serviço militar. Você acredita?
E elas foram chamadas pro serviço militar?
Era só uma estratégia para quebrar a possibilidade de ela vir ao Brasil. Para se proteger da sanha da ditadura, ela havia obtido a cidadania americana, pois já morava lá havia muitos anos. Agora podia vir ao Brasil como americana e isso irritou ainda mais os militares no poder. Ela veio com o cônsul pra tentar me visitar de novo. Não deixaram o cônsul entrar no Hospital Militar onde eu estava preso. Embora os Estados Unidos fossem nossos inimigos, eles eram fortes junto ao governo. Tinham ajudado o golpe, tinham financiado o golpe, usufruíam da ditadura. Eles tinham uma mão forte no Brasil, mas o país era cheio de milicos nazistas, antiamericanos. Meu amigo que estava preso aqui do meu lado [aponta para uma cama imaginária do seu lado direito] era um argentino trotskista, preso no Brasil quando retornava da Itália para a Argentina. Ele me contou que os torturadores dele gritavam assim: “Você é Trotski? Pois eu sou Hitler!” Imagine! Então esses caras estavam lá, e estão até hoje.
Como você avalia o resultado da Comissão da Verdade?
Ali [aponta para a estante de livros que ocupa boa parte de duas das paredes de seu quarto] tem dois volumes do relatório da Comissão da Verdade, e aquele é o livro dos mortos e desaparecidos [um livro grosso, de capa dura, aberto no meio da prateleira próxima ao chão, onde está o tapete de yoga]. Ele está aberto na pagina do meu amigo que desapareceu no Araguaia, o Pedro Alexandrino de Oliveira. Eu prezo imensamente o trabalho da Comissão! Lamento que a Dilma só tenha dado dois anos, porque é um trabalho gigantesco, pesquisar os milhares de perseguidos, presos, mortos pela ditadura. A Comissão devia ter status permanente, pois são milhares de pessoas a pesquisar. Como é que dois anos iam ser suficientes?
Tentamos ajudar de todo jeito. Ofereci o meu caso, que era emblemático: estive preso em São Paulo e no Rio; fui preso pela Operação Bandeirantes, fui pro Hospital Militar em São Paulo, depois pro HCE – Hospital Central do Exército, em Benfica, no Rio, onde fiquei durante seis meses. Também passei pelo DOI-CODI da rua Barão de Mesquita. Então, eu tinha evidências de todos estes lugares!Isso tudo me deu muitos elementos pra ajudar a Comissão, fortalecer o trabalho dela, dar pistas e mais argumentos para tentar tombar o prédio do DOI CODI na Tijuca...
Estou até hoje conectado com esse trabalho. Acho terrível que o governo Temer tenha emasculado a comissão: substituiu a maioria dos membros e praticamente anulou seu mandato. É um sinal a mais do quanto o governo golpista de Temer é, de fato, uma ditadura civil. É certo que ele tem os militares sendo preparados para intervirem em qualquer necessidade. Sempre que quiserem reprimir as manifestações críticas ao governo eles vão botar as polícias e os militares na rua. Então estou muito apreensivo com a situação.
Não tenho a menor ilusão de que os militares não estão intervindo. Eles só não estão aparecendo, mas os mais direitistas estão atuando na inteligência. Saber como conter a oposição pra manter o governo atual o mais tempo possível. Eu só gostaria que, caso a Dilma voltasse [a entrevista foi realizada antes da votação do Senado a favor do impedimento da Presidenta Dilma Rousseff], tivesse a coragem de abrir de novo uma agenda de continuação da pesquisa da Comissão, e dos processos contra todos os denunciados no relatório - os torturadores, os mandantes, os grandes responsáveis, os ditadores.
Na Argentina, no Chile, no Uruguai, muitas dessas autoridades, que eram terroristas do Estado, foram presas. Até ditador, com 80 e tantos anos, morreu preso em casa. No Brasil nenhum deles foi processado ou preso. E nós aqui. Nenhuma palavra oficial sobre o crime que foi o golpe, os crimes da ditadura, até surgirem a Comissão da Anistia, e depois a Comissão da Verdade, da Justiça e da Memória! Essa é minha visão atual e meu compromisso também. Eu tenho escritos também. Tenho o meu depoimento feito à Comissão da Verdade sobre tudo o que eu passei, e tenho o relatório sobre meu tempo no HCE [disponíveis na biblioteca do Instituto Pacs].
Você acabou citando exatamente os países com os quais o Pacs se articulou para nascer: Uruguai, Argentina e Chile. Como foi a formação dessa ponte?
Ele começou em Paris, com outros três companheiros latino-americanos – todos exilados. Foram eles que decidiram procurar alguém no Brasil. Algumas organizações francesas dedicadas aos direitos humanos deram a minha referência, porque tinham ajudado no meu caso. Um deles, o argentino Alberto Sanchez, veio ao Rio e foi me procurar no Ibase, pedindo para que eu me conectasse com o programa, e propondo que o Ibase fosse a entidade a dar cobertura formal ao programa.
Tive que responder que não dava, porque eu já estava saindo do Ibase. Isso era agosto de 1986. Eu lhe disse:
- “Eu sugiro que você vá conversar com o Betinho e veja o que você acha. Se você preferir o Ibase, procuraremos outro economista pra trabalhar com vocês. Senão, eu estou, no momento, disponível e acharemos outra entidade para nos dar cobertura”. Ele foi, conversou com o Betinho, consultou os companheiros do Uruguai e do Chile na França e decidiram por mim. Aí começamos o Pacs/Pries.
E esses companheiros, quem eram?
Tinham sido militantes, tinham sido presos e estavam fazendo doutorado em Paris. Todos economistas. Então nós passamos a ter uma equipe de quatro pessoas, cada um de um país: Chile, Uruguai, Argentina e Brasil. Juntos, a gente construiu esse Programa Regional de Investigações Econômicas e Sociais para o Cone Sul da América Latina. Logo eu questionei o nome do programa: “Esse nome não é bom; é muito longo, retórico, formal. Vamos criar outro? Que tal Pacs? Políticas Alternativas... porque aí já dá o toque de que nós não fazemos o que todo mundo faz. Pacs, um nome curto e sonoro. Mais prático ao invés de Pries/Cone Sul da América Latina”. Eles não concordaram. “Não, isso de falar de alternativas vai nos queimar no mundo acadêmico”. E eu: “Mas não é esse nosso trabalho? Criar alternativas? Então vamos fazer o seguinte. Eu sou a minoria, eu fico com Pacs aqui no Brasil e escrevo na apresentação da instituição: ‘o Pacs é a parte brasileira do Pries Cone Sul’. Tudo bem?” Eles concordaram.
Mas o acordo básico era que nenhum dos quatro iríamos nos ligar institucionalmente aos partidos políticos de esquerda dos nossos países. Todas as outras três equipes, nove anos depois, haviam ingressado em partidos políticos. Não só eles, indivíduos, mas a instituição. Resultado: sumiram no mar informe dos partidos, na instabilidade que eles são, e nós ficamos independentes, vivos e ativos até hoje!
Houve um trabalho do Pacs em parceria com governos populares, né?
Sim, mas era totalmente independente. Eu era do PT e quando ia fazer alguma assessoria ao PT – na área de formação, por exemplo, ou quando fui membro do governo paralelo*, em 89, na primeira campanha do Lula, trabalhando na área de economia internacional e dívida – era só eu, não tinha nada com o Pacs. Nunca coloquei o nome do Pacs em nada disso.
O compromisso do Pacs é com os movimentos populares e essa nossa identidade é independente de tudo: Igreja, partido, governo. Quando a gente dá uma assessoria, é profissional. Então, a assessoria ao governo de Alvorada e Porto Alegre no Rio Grande do Sul, de Ipatinga em Minas Gerais, tudo isso era assessoria do Pacs. “Ah, mas Ipatinga era governo do PT”. Não importa. Onde não havia PT, os melhores prefeitos eram de outros partidos, e tinham um forte compromisso popular também. Foi assim que o Pacs superou todas as épocas terríveis de degradação do PT e, com ela, o enfraquecimento dos movimentos sociais.
Quais foram os primeiros movimentos sociais que o PACS tem assessorado? Como foi esse começo?
Nós tivemos uma metodologia muito interessante, cada país fazia um estudo sobre determinada temática doméstica e depois a gente fazia um estudo que integrava os quatro países. O primeiro tema foram os sistemas financeiros: “Quem detém o poder do sistema financeiro no Brasil, no Uruguai, na Argentina, no Chile?” Cada um fez seu estudo, e o texto foi publicado. O sindicato dos bancários então convidou o Pacs pra fazer seminário com eles, pra assessora-los, e dialogar sobre estratégias. O MST também, porque nós fizemos outro estudo sobre os grupos econômicos e a terra, que identificou que alguns dos principais donos de terra no Brasil eram os bancos. Foi o começo da financeirização do Brasil. Assim começamos.
Quando a igreja ficou sabendo do trabalho, começou a nos convidar - a Pastoral da Terra, Indígena, Operária para conhecerem os nossos trabalhos. Aí nós fomos à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e começamos a oferecer assessoria à CUT [Central única dos Trabalhadores] e a diversos sindicatos. Um exemplo: a CNBB e algumas igrejas do CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - se juntaram para enviar uma delegação à Alemanha pra discutir a dívida externa, o desenvolvimento e o capital alemão, e pediram ao Pacs pra assessorar a delegação brasileira nessa viagem. Isto foi em 1987. E foi importante eles me terem na delegação, dando-lhes dados e argumentos para questionarem as autoridades alemãs sobre o tema da dívida.
A dívida você já vinha pesquisando desde o exílio?
Não, comecei em 1987. O primeiro estudo foi “Prometeu Acorrentado – Os Grandes Grupos Econômicos, O Endividamento Externo e o Empobrecimento do Brasil” [publicado em 1988]. A ideia de que a dívida é como Prometeu, que é colocado pelos deuses no alto da montanha. Todo dia, vem o abutre e come o fígado dele. Toda noite, o fígado cresce. E o mesmo continua acontecendo por toda a eternidade. A dívida é um pouco isso. Não acaba nunca e está sempre enfraquecendo o organismo da população.
Marcos, você vem de um trabalho de base bem anterior ao Pacs, tendo trabalhado com Paulo Freire durante o exílio em dois países da África e na Nicarágua. Foi só com o Pacs que você só conseguiu ter tempo profissional pra aprofundar a investigação sobre o modelo econômico dominante, ou isso já acontecia antes?
Antes, muito antes. Fiz o mestrado de Economia nos Estados Unidos, e trabalhei lá como pesquisador. Depois fui pra Europa, trabalhei com Paulo Freire e assessoramos o governo da Guiné Bissau e do Cabo Verde. Meu campo era educação e desenvolvimento. Eu tinha de fazer a conexão entre os dois. Que educação seria útil para o desenvolvimento próprio daqueles países? Um desenvolvimento comandado e controlado pelos próprios africanos nicaraguenses, etc.? Então eu juntei o profissional com o militante. Tive essa graça na minha vida. E fiz isso de uma maneira legal, que me fez crescer. Ao sair do Instituto de Ação Cultural, fui pro Conselho Mundial de Igrejas, onde trabalhei como responsável pelo programa sobre transnacionais. Rodei o mundo organizando encontros entre sindicatos e igrejas, debates, pesquisas sobre transnacionais em diferentes países e continentes. Eles viraram publicações, que estão naquelas pilhas ali atrás [aponta uma montanha com duas colunas de livretos ao lado da escrivaninha]. Quando voltei pro Brasil, tinha já uma formação macro muito ampla que não podia desperdiçar.
Aí descobri essa chave, que é uma característica do Pacs agora: a realidade é uma só. Não dá pra gente se prender ao micro, ao local. Daí as três dimensões do nosso trabalho: micro, meso e macro. É preciso descobrir maneiras de mostrar a articulação desses três níveis na nossa prática. Dando aula pra operários num curso da escola da CUT ou pra mulheres da Zona Oeste. Oferecendo publicações, reflexões sobre a realidade global e como ela se expressa no Brasil de um jeito próprio e, ao mesmo tempo, semelhante ao de outros países da América Latina. Essa conexão de micro com macro é muito importante. No macro, o debate com o Banco Mundial, por exemplo. No micro, os fatos concretos, experiências reais da população no Brasil, na Nicarágua, na Argentina, no Chile...
Você pode falar um pouco sobre a diferença entre catequização do proletariado e educação popular de emancipação?
Essa é uma das coisas mais caras pra nós do Pacs. A ideia de que não somos protagonistas, líderes da luta dos trabalhadores. Nós somos um apoio. O intelectual orgânico, como diz Gramsci, é aquele que está integrado no organismo social e que ajuda a pensar a realidade, para que os atores da transformação, que são os trabalhadores e trabalhadoras, atuem...
Ao mesmo tempo, como cidadãs e cidadãos nós do Pacs também somos trabalhadoras e trabalhadores. Na época [do nascimento do Pacs], adotávamos a ideia de que o operário assalariado seria a liderança, mas o capitalismo estava mudando. Eu, lá atrás, já vinha falando com a CUT: “Se preparem. O capitalismo está ficando cada vez menos empregador industrial, cada vez mais voltado para serviços e finanças. Isso vai diminuir o poder dos sindicatos. É preciso se abrir para um outro campo de militância, que é procurar construir outra economia, e essa outra economia inclui cooperativas, associações. É preciso trazer o cooperativismo pra dentro do sindicalismo. Não manter essa separação”. E a resposta de alguns dirigentes, até no governo Lula, era: “Não, isso não pode ser, Marcos. Quando o operário vira dono de empresa, ele vira burguês”. E eu: “Mas vocês não veem a diferença? Uma cooperativa é um lugar onde o dono da empresa trabalha. Ele não é um capitalista. Ele é um trabalhador no controle do seu instrumento de trabalho. Isso é uma libertação. Deixa eu perguntar uma coisa de volta: ‘Qual é o projeto de vocês para o trabalho e a organização da sociedade? É ficar eternamente assalariado? É ter uma sociedade de classes em que os donos do capital são constantemente pressionados a fazer concessões ao mundo do trabalho? Ou é uma sociedade emancipada, onde não há mais donos dos bens e recursos produtivos e distributivos, porque tudo o que é social é do social e não é privatizado?’.” Isso aí criou grandes debates dentro da CUT, até eles aceitarem entrar no movimento de Economia Solidária.
Pra chegar à sua pergunta, Janaína, o grande objetivo do trabalho do Pacs é ajudar os trabalhadores e as trabalhadoras, e todos aqueles que se relacionam conosco, a se tornarem sujeitos do seu desenvolvimento como pessoa e como coletividade. Eu não sou o empoderador de ninguém. Como dizia o Paulo Freire sobre educação: ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho; nós nos educamos em comunhão. Então eu digo: ninguém desenvolve ninguém, nem ninguém se desenvolve sozinho; ninguém empodera ninguém, e ninguém se empodera sozinho. Então, o nosso trabalho é apoiar o empoderamento uns dos outros. “Ah, mas isso arrisca que ele se torne tão bom que ele me supere...” Ótimo! Se ele se tornar tão bom que me supere, melhor para todos. E será a consumação do meu trabalho como educador.
Ajudar cada um a ser o melhor. E quanto melhor, melhor pra todos. Porque eu aqui não estou só pra mim. Eu estou pra todos. Essa é a grande lógica da ação libertadora. O eixo da educação é o educando e não o educador. O educador é um mero apoio, instrumento, guia, mas tudo depende do educando. Toda a sua autoconstrução depende dele e dela. Isso tem marcado o nosso trabalho com educação popular desde os anos 1980.
Quem observa o trabalho do Pacs sabe que existe uma centralidade muito grande na dimensão econômica. Na caminhada, surgiram alguns conceitos que foram desenvolvidos a partir da prática. Quais conceitos você diria que são mais caros ao Pacs?
Eu falei das esferas micro, meso e macro. Já é um conjunto conceitual importante. A ligação e a interdependência entre elas orienta nosso trabalho educativo e político. Por isso a gente continua ligado à América Latina – temas continentais, integração regional, solidariedade entre os povos – ao debate sobre a crise de civilização e aos desafios da transição para uma civilização qualitativamente superior.
Outro ponto é entender que o conceito de desenvolvimento como apenas crescimento econômico é muito empobrecedor. Crescimento é uma coisa, desenvolvimento é outra. Você cresce até os vinte anos e então para de crescer. O que sobra? Continuarmos nos desenvolvendo, no plano qualitativo. Por que com o país tem de ser diferente? Tem que ser assim também. Crescer até um certo ponto, depois manter o bom viver de todos e desenvolver o que é peculiarmente humano, as grandes qualidades do ser humano: comunicação, sentimento, emoção, afeto, amor, beleza, arte. É pra isso que nós estamos aqui. O resto é meramente a nossa dimensão animal. Trabalhar só para sobreviver é o que faz um tigre caçando. Nós também estamos caçando até hoje. Por isso o frei Betto diz: “A nossa sociedade é tão atrasada que ainda estamos na luta pelos nossos meros direitos animais”. Ainda estamos nesse nível. Então, o nosso objetivo é romper a escravidão do trabalho que o capitalismo fecha em torno de nós, e ganhar a liberdade de desenvolver o que é especificamente humano. Esse é o grande objetivo da luta econômica. É ela viabilizar a libertação de todos e todas para nós chegarmos a essa etapa realmente humana de existência na Terra.
Estamos agora nessa luta para a criação de uma cidadania planetária, essa visão do planeta como uma grande família. É o título da Encíclica do Papa Francisco: A nossa casa comum. Casa comum de toda a família humana. Isso coincide com uma luta dos 1800, que é muito esquecida nas esquerdas, que é a seguinte: qual é o grande objetivo do socialismo, do comunismo? É a gente chegar a edificar uma sociedade sem classes sociais. E o que é uma sociedade sem classes? É uma sociedade onde a humanidade inteira é irmã. Nada menos, nada mais.
Portanto, todo mundo está interessado no bem-estar de todo mundo e de cada um. Não pode haver pobreza numa casa onde todo mundo é querido uns dos outros. Por isso, nessa rede onde estou, Diálogos em Humanidade, a gente trabalha uma noção de política baseada na amizade e na confiança mútua. Como é que a gente pode fazer com que a política aconteça com essa concepção de valores? No nível local, comunitário, onde a gente se conhece e pode desenvolver amizade, afeto, confiança com base neste conhecimento mútuo. E é daí que a gente parte para uma nova globalização, que é a cidadania planetária como uma grande família.
Sobre a criação de mais pessoas noólogas. Qual é a potência dos trabalhos locais dentro do instituto Pacs?
Desde que eu fui operário, depois no Ibase, trabalhando com a área sindical, depois no Pacs, trabalhando com os movimentos populares, sempre tive muita sede de aprender do trabalhador. Não de uma maneira mítica, fingindo que eu ignoro o quanto faz falta a escolarização, o estudo teórico. Eu percebi – e aí é minha história longa de educador popular, que está escrita em vários lugares – o que é essa busca de privilegiar a prática, sendo ela a origem e a razão de ser da teoria, que é o define o intelectual orgânico que Gramsci propõe. Vou dar um exemplo. O grupo de Pastoral Operária de Ipatinga convidou o Ibase para fazer um seminário.
O Vale do Aço inteiro, várias cidades, mandaram representantes. Era sobre análise de conjuntura. Compartilhei com eles não só o método, mas qual era o sentido dele. O sentido não é eu fazer análise de conjuntura pra vocês, também não é vocês a fazerem para si, é o porquê disso tudo. O que nós queremos com análise de conjuntura? Nunca fazer análise de conjuntura sem apontar a estrutura que está envolvendo e fundando a conjuntura, e que objetivo nós temos de estar discutindo isso. No final do seminário, me convidaram pra fazer outro, só com o pessoal da Oposição Sindical Metalúrgica. Eu questionei: “Tem gente muito mais competente do que eu, que trabalha com sindicalismo, com os metalúrgicos e tal, posso até indicar...” E eles: “Não. Não é pelo conhecimento do setor metalúrgico que estamos convidando você. É pela metodologia. Pela visão e modo de pensar e praticar a educação popular que você trouxe pra nós”. Então o primeiro trabalho foi responder à seguinte pergunta: “Devemos ou não disputar a direção do sindicato sabendo que,”, era plena ditadura, “se a gente perder a eleição aqui, nós vamos ser mandados embora e vai ser difícil construir outra oposição sindical na Usiminas?” E eu disse: “Eu não vou responder, não tenho nem condições de fazer isso. Vamos procurar juntos a resposta. Eu vou pra casa, vou colocar isso pros companheiros do Ibase, e volto aqui pra esse seminário”. Pra me preparar, eu estudei um pouco sobre a situação da metalurgia no mundo. Fizemos o primeiro seminário, quase todo focalizado nos objetivos:
- “Vocês estão trazendo o fato de que se organizaram dentro da fábrica para disputar o sindicato. Muito bem. Primeira questão: para quê vocês querem ganhar o sindicato?”
- “Pra ter um sindicalismo de base, organizar os trabalhadores, ganhar consciência da ditadura”.
- “Pra quê ganhar consciência da ditadura? Que objetivos vão além de ganhar o sindicato?”
- “Pra quê isso? O nosso objetivo é ganhar o sindicato”.
- “Pois sim. Mas é preciso que, desde já, tenham uma segunda estratégia. Vocês têm que saber o que querem ganhando ou não ganhando”. E acrescentei: “Agora eu vou compartilhar com vocês qual é o papel da metalurgia, da Usiminas no Brasil hoje, pra vocês verem a importância disso e da luta de vocês para além de Ipatinga e do Vale do Aço”.
Então é o momento de eu ser educador, porque antes foi o meu momento de ser educando. Eu aprendi tudo sobre Ipatinga por eles. É esse tipo de casamento de saberes que é a educação popular libertadora.
Trinta anos depois da fundação do Pacs, o que você tem a desejar pro aniversariante?
Tem várias respostas. A primeira e mais importante: eu gostaria que o PACS um dia não precisasse mais existir, porque ele existe só em função desse caminho de libertação. Se a gente, um dia, chegar ao grande objetivo que é o povo consciente e dono do seu próprio caminhar histórico e do desenvolvimento dos potenciais que ele carrega em si em harmonia com o meio natural, nós não vamos precisar mais fazer o que fazemos. Esse é o primeiro desejo: que o nosso povo e a nossa América Latina libertem-se, e que nós deixemos de ser necessário.
Segundo: enquanto existe essa realidade, gostaria que o Pacs continuasse por mais trinta anos, pelo menos, e que, cada vez mais, conseguisse ampliar recursos materiais e humanos pra realizar esses objetivos que nós temos. Também gostaria que o Pacs, cada vez mais, percebesse a profunda complementaridade entre transformação social e transformação pessoal. Acho que isso ainda não está edimentado entre nós. Ainda há um espírito de militância muito pra fora. Às vezes, perde-se de vista que o empoderamento para o desenvolvimento é tanto de cada uma e cada um de nós, como sujeitos, quanto de todas as classes trabalhadoras, de todos os povos. Sem essa dimensão de autodesenvolvimento, o nosso trabalho pra o outro se empoderar e se desenvolver cada vez mais como sujeito do seu caminhar vai ficar limitado. Seremos como o Saci, pulando numa perna só.